BEM PELO CONTRÁRIO
A grande
mistificação
por
MANUEL MARIA CARRILHO
A gelada
placidez com que o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, apresentou as suas
novas medidas de austeridade, que fizeram estremecer todos os portugueses,
surpreendeu muita gente. Mas não devia: mais do que, como alguns disseram, a
outra face de um escondido cinismo, ou de uma lamentável impreparação, ela é na
verdade a pura expressão de um conjunto de convicções nucleares, tão erradas
como dogmáticas, que dominam hoje boa parte da política, da economia e dos
"media".
A questão é de fundo, não é de forma. Trata-se da placidez de quem
vive numa campânula, isolado do mundo, e age com base em alguns dogmas, imune à
realidade. O problema é, de resto, muito geral, ele apenas toma entre nós uma
forma mais aguda, dadas as circunstâncias do momento.
A placidez do primeiro-ministro, a campânula em que vive e os
dogmas que o inspiram, tudo isto decorre de uma teoria que data já dos anos 70
do século passado, que é a teoria da eficiência dos mercados: ela postula o
dogma que só os mercados contam, tudo o mais é irrelevante. E que eles se
autorregulam automaticamente, dispensando qualquer intervenção do Estado, que
só vem sempre, claro, complicar.
Esta teoria foi o passo decisivo na divinização dos mercados que
se disseminou por todo o mundo contemporâneo como um vírus incontornável de uma
nova servidão voluntária. Sobretudo quando se passou a aplicar a mesma cegueira
também aos mercados financeiros, num movimento de intensidade tal que, apesar
de se reconhecer a sua "exuberância irracional" - as palavras foram
de Alan Greenspan -, foi muito aplaudido nos anos 90 e no começo do século XXI.
Não se prestou então a devida atenção a muitos fatores, e
nomeadamente ao facto, simples mas determinante, de a finança não ter
propriamente por objeto a relação dos indivíduos com as mercadorias, mas antes
a relação dos indivíduos com o tempo, no preciso sentido em que um título
financeiro é um direito sobre rendimentos futuros, por natureza bem incertos...
Pelo contrário, pretendeu-se com a teoria da eficiência financeira justificar a
própria "financeirização" da economia, o que se fez com os resul-
tados que hoje todos conhecemos.
O que é absolutamente extraordinário - e exige hoje um novo tipo
de lucidez política, que terá de se distanciar tanto da histérica apologia como
da cega diabolização dos mercados -, é que esta grande mistificação, que tem
sido sistematicamente desmentida pelos factos desde a eclosão da crise dos
subprime, em 2007, continua a dominar imperialmente a economia, a pretender impor-se
a todos os sectores (saúde, educação, televisão, segurança, etc.) e a
condicionar completamente o discurso político-mediático, essa miscelânea
ininteligível que cada vez mais parece uma conversa de papagaios amestrados em
economês/financês.
Em rigor, a situação só é comparável com a do fanatismo religioso
mais ortodoxo, em que é a própria implausibilidade dos dogmas que reforça a
cegueira dos seus crentes. Assim se tem atribuído à economia um estatuto à
parte, que a protege do confronto com a realidade e com os seus desmentidos.
Estatuto que ninguém imagina que noutros saberes - pense-se, por exemplo, na
medicina ou na aeronáutica - pudesse ser tolerado um minuto que fosse...
Repetidamente incapaz de qualquer previsão segura e útil,
alimentada por cálculos matemáticos falaciosamente usados e manipulados
(veja-se, a propósito, o esclarecedor livro O Vírus B - A Crise Financeira e as
Matemáticas, de C. Walter e M. Pracontal), apoiando-se em conivências e
cumplicidades de todo o género, nomeadamente na universidade e na política,
esta economia revela-se uma disciplina de natureza astrológica, que - como
ouvimos terça-feira nas redondas e intermináveis declarações do ministro das
Finanças, Vítor Gaspar - tudo justifica sem na verdade nada explicar.
E foi a esta economia que se entregou o projeto europeu, como se
todas as outras dimensões fundamentais - sociais, culturais, etc. - daí
decorressem naturalmente. Viu-se! E o problema é que, também aqui, se persiste
no erro, como ainda agora ocorreu com a generalidade dos dirigentes políticos,
a demitirem-se das suas responsabilidades e a pendurarem- -se nas decisões do
BCE, numa nova "fuga para a frente" cheia de armadilhas, como
rapidamente iremos verificar.
O economês/financês tornou- -se a mais resistente forma de
ignorância contemporânea sobre as pessoas, a sociedade e o mundo. Devia, por
isso, era ser estudado pela "agnotologia", essa recente disciplina
criada por Robert N. Proctor, da Universidade de Stanford, para estudar a
ignorância, entendida esta não como algo destinado a ser superado, mas como
algo de intencionalmente fabricado, produzido com a devotada colaboração de
diversas formas de informação e de conhecimento.
É por isso urgente questionar seriamente, e em todas as dimensões,
esta disciplina e os seus dogmas, com o objetivo de quebrar a arrogante
ortodoxia que a estrutura, e de introduzir um verdadeiro pluralismo no seu
interior, nas suas abordagens e nas suas propostas.
E não haja ilusões: tudo o que se possa procurar como alternativa
política à situação atual, seja em termos de análise e de ideias seja de
linguagem e de propostas, passa necessariamente por aqui. Só assim se
conseguirá sair da campânula que já asfixia o País.