"O partido zombie"
por Isabel Câncio
("Diário de Notícias", 15/10/2010)
Numa reportagem sobre quem constrói a Festa do Avante! fui amiúde confrontada pelos objectos da minha demanda jornalística. Diziam estes não entender porque estava eu a fazer tantas entrevistas se quando chegasse ao jornal os meus "chefes" iriam "cortar tudo". Porque, afiançavam-me, tudo o que diz respeito ao PCP é "censurado". Houve mesmo quem tivesse a simpatia de me explicar porquê: os patrões não querem que o povo saiba o que diz "o partido". É que a palavra "do partido" liberta e portanto é preciso calá-la, sob pena de o povo quebrar as grilhetas, etc.
Lá tentei fazer ver àquelas pessoas que o meu patrão tem bastante mais que fazer que cortar os meus textos e que é um bocadito desrespeitador do trabalhador jornalista - para além de um niquinho ideologicamente contraditório - decretá-lo, sem apelo, capacho. Mas dei-lhes razão quanto à cobertura noticiosa do PCP e a minha opinião sobre o motivo: a generalidade dos jornalistas (excepto, claro, os "do partido") não levam o PCP a sério. Acham que não conta; dão a tudo o que dali sai o desconto que resulta de uma curiosa mescla de desprezo (pelo que vêem como um anacronismo ideológico) e respeito (pela memória sacra da resistência a Salazar). E isso - coisa que me eximi de acrescentar na altura - é o melhor que pode suceder ao PCP.
Trata-se, afinal, de um partido que não se inibe de venerar publicamente um autor de crimes contra a humanidade que ombreia com Hitler - sim, o "genial pai dos povos" Estaline; cujos dirigentes consideram a monstruosa monarquia da Coreia do Norte "opção do povo", quiçá uma democracia; que defende a greve geral por cá a propósito do corte de salários no sector público e o despedimento de um milhão de funcionários públicos na ditatorial e oligárquica Cuba; que protesta, em comunicado oficial, contra a atribuição do Nobel a Liu Xiaobo, condenado a 11 anos de prisão por delito de opinião na China do capitalismo selvagem de partido único, da depredação ambiental e do recorde mundial das execuções capitais.
Os Estados democráticos apertam a mão aos líderes chineses e fazem negócios com eles, é certo - mas só por acharem não ter remédio. Já o PCP defende o regime chinês (como o norte-coreano) por fé - a fé de que uma bandeira vermelha, "comunismo", "revolução" e "república popular" na Constituição mais horas de paradas militares e ódio aos EUA são sinónimo de bem, e o resto (sendo o resto as pessoas e os seus direitos) que se lixe. Tão obscena duplicidade e tão sinistro desprezo pelos valores democráticos e pelos direitos humanos só não causam repugnância e terror generalizados porque para a maioria o PCP não existe. É uma caricatura, uma espécie de zombie da história que em vez do asco que as suas posições justificam concita simpatia, piedade e até protecção. A começar pela que os media lhe concedem, ao dá-lo como morto.