5/24/2008

BIOLOGIA 1

GOULD, Stephen Jay, A Falsa Medida do Homem, Lisboa, edições. Quasi, 2004
Do capítulo “A biologia e a natureza” (pp. 394/404)
“O impacto do carácter único do homem no mundo tem sido enorme, porque estabeleceu um novo tipo de evolução que permite transmitir o conhecimento e o comportamento adquiridos através das gerações. O carácter único do homem reside essencialmente no nosso cérebro e encontra expressão na cultura constituída a partir da nossa inteligência e no poder que nos confere, o poder de manipularmos o mundo. As sociedades humanas mudam por evolução cultural e não como resultado de alterações biológicas. Não temos provas de mudanças biológicas no tamanho ou estrutura do cérebro desde que o Homo sapiens apareceu nos registos fósseis há uns cinquenta mil anos. (…) Tudo o que fizemos desde então - a maior transformação que experimentou o nosso planeta, desde que a crosta terrestre se solidificou há aproximadamente quatro biliões de anos – é produto da evolução cultural. A evolução biológica (darwiniana) continua na nossa espécie; mas o seu ritmo comparado com o da evolução cultural é tão desmesuradamente lento que a sua influência sobre a historia do Homo sapiens foi muito pequena. Enquanto o gene da anemia ia diminuindo de frequência entre os negros norte-americanos, inventámos o caminho-de-ferro, o automóvel, a rádio, a televisão, a bomba atómica, o computador, o avião e a nave espacial.
A evolução cultural pode avançar com tanta rapidez porque opera – contrariamente à evolução biológica – de maneira “lamarkciana”, através da herança de caracteres adquiridos. O que uma geração aprende pode transmitir-se à seguinte (…)
Por outro lado, a evolução darwiniana é um processo indirecto: uma característica vantajosa só pode surgir depois de uma variação genética e, para ser preservada, torna-se necessária a selecção natural. Como a variação genética ocorre de forma aleatória, não estando preferencialmente voltada para a aquisição de características vantajosas, o processo darwiniano avança com lentidão. A evolução cultural não é apenas rápida; é também facilmente reversível, pois os seus produtos não estão codificados nos nossos genes.
Os argumentos clássicos do determinismo biológico fracassaram porque os caracteres que invocam para estabelecer diferença entre grupos são, em geral, produtos de evolução cultural.
(…) Em suma, a base biológica do carácter único do homem leva-nos a rejeitar o determinismo biológico. O nosso cérebro grande é o fundamento biológico da inteligência; a inteligência é a base da cultura; e a transmissão cultural cria uma nova forma de evolução, mais eficaz do que os processos darwinianos no seu domínio limitado: a “herança” e a modificação do comportamento aprendido. Como afirmou o filósofo Stephen Toulmin (1) “A cultura tem o poder de se impor à natureza a partir de dentro” (pp. 394-5)

“Alguns biólogos estão dispostos a atribuir aos processos darwinianos um papel fundamental, não apenas no aparecimento, num passado remoto, mas também na actual manutenção de um conjunto de comportamentos adaptativos específicos que constituem uma “natureza humana” biologicamente condicionada. Creio que esta velha tradição de argumentação – que encontrou a sua mais recente expressão na “sociobiologia humana” – é incorrecta, não porque a Biologia seja irrelevante, nem porque o comportamento humano só reflicta uma cultura desenraizada, mas porque a biologia humana sugere que a genética desempenha um papel distinto e menos determinante na análise da natureza humana”
(…) Pela minha parte considero que a Biologia pode contribuir em dois aspectos fundamentais:
1. As analogias fecundas. Grande parte do comportamento humano é, sem dúvida, adaptativo; se não o fosse, já cá não estaríamos. Mas a adaptação nos humanos não é, nem um argumento apropriado, nem um bom argumento a favor da influencia genética. Pois nos seres humanos (…) a adaptação pode dar-se pela via alternativa da evolução cultural, não genética. (…) Mas mesmo quando um comportamento adaptativo não é genético a analogia biológica pode ser útil para interpretar o seu significado. (…)
2. Potencialidade biológica versus determinismo biológico.
(…) Creio que os sociobiólogos cometem um erro fundamental nas categorias. Eles buscam a base genética do comportamento humano num nível errado. Procuram-na entre os produtos específicos das leis geradoras – a homosexualidade de Joe, o medo de estranhos de Marta – quando as próprias leis são as estruturas genéticas profundas do comportamento humano. (…) Se inato significa apenas possível, ou mesmo provável em determinadas circunstâncias, então tudo o que fazemos é inato e a palavra carece de sentido. A agressividade é uma manifestação de uma lei geradora que, noutras circunstâncias, favorece a paz. A gama de amplitude dos comportamentos específicos engendrados por esta lei é enorme e constitui um magnífico exemplo da flexibilidade típica do comportamento humano. Esta flexibilidade não deveria permanecer velada pelo erro terminológico que consiste em qualificar de “inatas” algumas manifestações comuns da lei, cujo aparecimento podemos predizer em certas circunstancias” (pp. 396-400)
(1) Stephen Toulmin, Back to Nature, New York Review of Books de 9 de Junho, 1977, pp. 3-6

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