“Laranja Mecânica”, 1971
de Stanley Kubrick
A arte é algo que, através da sua forma,
nos seduz. Qualquer artista sabe que pode levar o Leitor onde quiser, desde que
o prenda ao objeto artístico pela sua beleza, enquadrada esta, logicamente, no
conceito de beleza a que ele, Leitor, há-de reagir positivamente. E, claro, as grandes obras acabarão por impor
novos gostos ou conceitos de beleza.
Vem isto a propósito de “Laranja Mecânica” de Kubrik, filme que tenho
visitado ao longo da vida: aos vinte anos senti-me dominado pelo seu impacto e,
hoje, algumas décadas passadas, ao revê-lo numa sessão de cinemateca, pareceu-me
sobretudo um filme sobre a manipulação.
A primeira manipulação passa-se na
“leitaria” onde o leite é adulterado por substâncias que, manipulando o
cérebro, lhe dão uma “estaleca”.
Enquanto assistimos a cenas violentas e
presenciamos a dor de vítimas, ouvimos música clássica, a qual, em princípio,
pelo prazer que habitualmente a sua escuta proporciona, se associa, não a dor, mas a êxtase. E extase será o que experimenta Alex em tais
cenas, no seu papel de violador e assassino.
Portanto, nós, espetadores, através da música, identificamo-nos com o estado de espírito de Alex e damos-lhe
razão, não por que ele mate ou viole,
mas porque a música que entretanto se escuta – e ele nem a não ouve! -
nos empolga. Ou seja, Alex entusiasma-se com a violência que leva a cabo e nós,
espetadores, com a música que ouvimos, a qual, aliás, contém em si um crescendo
que funciona como a busca de um máximo de intensidade. E, assim, ambos somos simultâneamente
empolgados, Alex pela dor e sangue que provoca e, nós, pelo som arrebatador da música. Eis a primeira manipulação, e não pequena, que
o filme executa, isto é, faz-nos associar prazer musical e sofrimento.
A manipulação que ocupa a segunda parte
do filme consiste na associação entre violência e enjôo. E, de caminho, também a violência se associa à
música de Beethoven. Trata-se, afinal, da associação que o espetador sofreu, mas
já protagonizada por Alex. Isto é, da
mesma forma que o filme, na primeira parte, nos leva a associar êxtase musical
e dor, assim, na segunda parte, uma tal associação se faz em Alex, mas já com este a repudiar a dor. E quanto a nós, espetadores, ficamos
“curados” daquela primeira associação, isto é, da associação extase musical/sofrimento?
Não. A música continuar-nos-à associada a violência mas, desta feita, à que o
Estado já exerce sobre Alex.
E a manipulação acaba por ser no ecrã o
ponto culminante do filme, quando Alex pousa para os fotógrafos no hospital,
abraçado ao político que dele se serve.
Manipulações, menores dir-se-ia, são ainda o uso que Alex faz do seu saber bíblico
para enganar o capelão, quando este imagina o prisioneiro do lado de Cristo e,
afinal, aquele se vê em sonhos um seu algoz, e a manipulação que o escritor,
outrora vítima de Alex, exerce através do “vinho” para neutralizar o rapaz.
Kubrik jogou afinal “em casa” ao tratar
de manipulação no seu filme: “Laranja
Mecãnica” é um objeto artístico e este, como ao princípio
se disse, manipula para seduzir.
CMelo
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