3/17/2013


“Laranja Mecânica”, 1971
de Stanley Kubrick


A arte é algo que, através da sua forma, nos seduz. Qualquer artista sabe que pode levar o Leitor onde quiser, desde que o prenda ao objeto artístico pela sua beleza, enquadrada esta, logicamente, no conceito de beleza a que ele, Leitor,  há-de reagir positivamente.  E, claro, as grandes obras acabarão por impor novos gostos ou conceitos de beleza.

Vem isto a propósito de  “Laranja Mecânica” de Kubrik, filme que tenho visitado ao longo da vida: aos vinte anos senti-me dominado pelo seu impacto e, hoje, algumas décadas passadas, ao revê-lo  numa sessão de cinemateca, pareceu-me sobretudo um filme sobre a manipulação.

A primeira manipulação passa-se na “leitaria” onde o leite é adulterado por substâncias que, manipulando o cérebro, lhe dão uma “estaleca”.
Enquanto assistimos a cenas violentas e presenciamos a dor de vítimas, ouvimos música clássica, a qual, em princípio, pelo prazer que habitualmente a sua escuta proporciona, se   associa, não a dor, mas a êxtase.  E extase será o que experimenta Alex em tais cenas, no seu papel de violador e assassino.  Portanto, nós, espetadores, através da música, identificamo-nos com  o estado de espírito de Alex e damos-lhe razão, não por que ele mate ou viole,  mas porque a música que entretanto se escuta – e ele nem a não ouve! - nos empolga. Ou seja, Alex entusiasma-se com a violência que leva a cabo e nós, espetadores, com a música que ouvimos, a qual, aliás, contém em si um crescendo que funciona como a busca de um máximo de intensidade.  E, assim, ambos somos simultâneamente empolgados, Alex pela dor e sangue que provoca e,  nós, pelo som arrebatador da música.  Eis a primeira manipulação, e não pequena, que o filme executa, isto é, faz-nos associar prazer musical e sofrimento.

A manipulação que ocupa a segunda parte do filme consiste na associação entre violência e enjôo.  E, de caminho, também a violência se associa à música de Beethoven. Trata-se, afinal, da associação que o espetador sofreu, mas já protagonizada  por Alex. Isto é, da mesma forma que o filme, na primeira parte, nos leva a associar êxtase musical e dor, assim, na segunda parte, uma   tal associação se faz em Alex, mas  já com este a repudiar  a dor. E quanto a nós, espetadores, ficamos “curados” daquela primeira associação, isto é, da associação extase musical/sofrimento? Não. A música continuar-nos-à associada a violência mas, desta feita, à que o Estado já exerce sobre Alex.
E a manipulação acaba por ser no ecrã o ponto culminante do filme, quando Alex pousa para os fotógrafos no hospital, abraçado ao político que dele se serve.

Manipulações, menores dir-se-ia,  são ainda o uso que Alex faz do seu saber bíblico para enganar o capelão, quando este imagina o prisioneiro do lado de Cristo e, afinal, aquele se vê em sonhos um seu algoz, e a manipulação que o escritor, outrora vítima de Alex, exerce através do “vinho” para neutralizar o rapaz.
Kubrik jogou afinal “em casa” ao tratar de manipulação no seu filme:  “Laranja Mecãnica”  é  um objeto artístico e este, como ao princípio se disse,  manipula para seduzir.

CMelo

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