5/24/2011

Trabalhadores: classe ou fragmentos?

por: João Bernardo (*)






Lê-se e ouve-se com muita frequência que a classe trabalhadora já não existe.

(...)

Muito antes da era da informática, nos Estados Unidos da década de 1920, um profeta da tecnocracia, Howard Scott, defendera já que o crescimento inexorável da produtividade ultrapassaria muito as oportunidades de emprego e de investimento e provocaria o desemprego crescente.

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O argumento de que o progresso da produtividade condena os trabalhadores à extinção foi formulado (...) quando a economia assentava naquelas máquinas industriais que a electrónica e a informática viriam a tornar obsoletas.

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os progressos da tecnologia electrónica (...) provocam o desemprego nas áreas dependentes das tecnologias retardatárias, [e] abrem áreas novas, onde é exigida uma requalificação profissional permanente.

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As grandes lutas sociais das décadas de 1960 e de 1970, tanto na esfera norte-americana como na esfera soviética e chinesa, mostraram que o taylorismo e o fordismo estavam esgotados enquanto sistema de controlo da força de trabalho.

(...) em 1974, com a crise desencadeada pelo aumento dos preços do petróleo. Foi a partir de então que começaram gradualmente a difundir-se novos princípios de administração das empresas e de controlo dos trabalhadores. Alguns autores denominam a situação actual «pós-fordismo», (...) não vejo razão para não designar também o modelo actual de organização com o nome da Toyota, que primeiro o aplicou de maneira sistemática e que melhor o formalizou.



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Tanto os sindicatos reformistas e os partidos operários burocratizados como o sindicalismo radical e, posteriormente, as grandes vagas de contestação autonomista nas décadas de 1960 e de 1970 só são compreensíveis se não esquecermos que milhares e milhares de trabalhadores se encontravam diariamente dentro dos muros das mesmas instalações.



O toyotismo encontrou uma maneira de minorar, ou até de evitar, aquele considerável risco político. A electrónica permite que os administradores das empresas centralizem a captação das informações e a emanação das decisões independentemente de qualquer contacto físico com os trabalhadores e de qualquer relação física dos trabalhadores entre si. Os vários processos particulares de trabalho ficam integrados em grandes conjuntos mesmo que sejam prosseguidos em isolamento físico, por vezes podendo até localizar-se a milhares de quilómetros de distância uns dos outros. Assim, as economias de escala sociais aumentam sem que seja necessário aumentá-las fisicamente.



Além disso, a tecnologia electrónica conseguiu um feito inédito na história da humanidade, a fusão entre o sistema de fiscalização e o processo de trabalho.

Até à época actual, os trabalhadores tinham de ser vigiados por funcionários especializados, que não só podiam ser enganados mas que representavam uma despesa considerável para os donos das empresas. (...). No toyotismo, porém, o mero facto de fazer funcionar uma máquina electrónica ou simplesmente um computador constitui uma forma de fiscalização do trabalho. Trabalhar e ser vigiado já não se distinguem.

(...)

Uma das preocupações fundamentais do toyotismo consiste em limitar a concentração física dos trabalhadores, ou até em dispersá-los fisicamente, e ao mesmo tempo concentrar os resultados do trabalho através da tecnologia electrónica.

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(...) Em primeiro lugar (...) o toyotismo divide cada linha de produção em equipas de trabalhadores, que se encarregam, dentro de certos limites, de múltiplas funções.

Deste modo, mesmo quando se encontra reunida nas mesmas instalações, a força de trabalho está repartida em segmentos.



Em segundo lugar, os capitalistas têm-se esforçado com êxito por impor horários flexíveis aos trabalhadores de cada empresa. (...) trata-se de desestruturar o velho colectivismo proletário, já que a flexibilidade de horários torna praticamente inviável a sustentação das associações de bairro ou das meras tertúlias de tasca ou de cervejaria.





Em terceiro lugar, verifica-se em muitos casos uma elevadíssima rotatividade da força de trabalho. Isto (...) impede o estabelecimento de quaisquer elos de solidariedade sólidos.

(...)

Em quarto lugar, as consequências nefastas dos horários flexíveis conjugam-se com as consequências não menos nefastas da elevada rotatividade da força de trabalho, nos sistemas de contrato a prazo e de trabalho a tempo parcial. (...) contribuindo duplamente para dificultar as relações entre as pessoas (...) e para isolar umas das outras as pessoas que contribuem para os mesmos processos de trabalho.





Em quinto lugar, a generalização da subcontratação provoca a fragmentação física das empresas.

Por um lado, sucede com frequência que as empresas dêem autonomia a departamentos e os convertam em unidades formalmente autónomas, (...), é também usual que uma empresa, em vez de comprar outra, lhe subcontrate os serviços. (...)

os trabalhadores ficam divididos entre as firmas principais e as múltiplas subcontratantes, ainda que as suas actividades se insiram numa mesma cadeia de produção.



Em sexto lugar, (...) o sistema de franchising, (...) A firma principal dá as filiais locais a explorar a pequenos patrões, impondo-lhes no entanto (...) um sistema de organização da força de trabalho e um sistema de atendimento ao cliente que têm de ser rigorosamente cumpridos. Por seu lado, os pequenos capitalistas que tomam a franchising lucram com o facto de terem diminuído as suas despesas em aquisição de tecnologia e de beneficiarem da publicidade assegurada, e do mercado captado, pela firma principal.



Em sétimo lugar, a fragmentação da força de trabalho decorrente da subcontratação e da franchising assume ainda maiores proporções na terceirização. (...) processo pelo qual uma empresa converte alguns dos seus empregados em profissionais formalmente independentes, contratando depois os seus serviços.

(...) cucu revisto ate aqui

A transformação do assalariamento em terceirização, que assumiu proporções maciças em certas áreas profissionais, tem como resultado o completo isolamento recíproco destes trabalhadores. Onde antes eles enfrentavam os patrões em conjunto com os seus colegas, passam agora a fazê-lo sozinhos.



Em oitavo lugar, (...) Não é a primeira vez que o capitalismo assimila rapidamente massas colossais de novos assalariados, mas no final do século XIX e no começo do século XX fizera-o através da concentração dos novos proletários num mesmo meio físico e social. (...). Hoje passa-se exactamente o contrário, e as pessoas recém-chegadas em massa ao mercado de trabalho capitalista, quando não são mantidas em isolamento recíproco, dispersam-se entre as firmas principais, as subcontratantes e as franchisings, sem terem oportunidade de criar uma nova cultura proletária baseada, como a anterior, em vastas redes de camaradagem e de solidariedade e no confronto global com os patrões. Como se isto não bastasse, e não confiando demasiadamente nos automatismos económicos e sociais, os capitalistas têm concentrado enormes esforços na difusão de uma subcultura de massas assente em ilusões de promoção individual. Fica assim duplamente contrariada a formação de hábitos e de comportamentos comuns entre a força de trabalho recém-ampliada.



Para coroar este processo, os ideólogos do capitalismo deram asas à imaginação e anunciaram a utopia última – o trabalho seria prosseguido no lar doce lar através de meios electrónicos, em condições de máxima dispersão, e a gestão localizar-se-ia nos escritórios dos administradores graças à informática, em condições de máxima centralização.



Com efeito, (...), predominam hoje as formas de concentração económica que dispensam a concentração da propriedade, a tal ponto que a firma principal chega a fraccionar-se ela mesma em unidades formalmente independentes para melhor exercer sobre elas o seu controlo económico.



Um dos componentes do toyotismo é o sistema do just in time, que consiste em reduzir ao mínimo os elementos (produtos ou matérias-primas) em armazém e em adequar tanto o fluxo da produção às oscilações da procura como o tipo da produção às especificações da procura. Este sistema não se limita a reduzir os custos e tem várias outras implicações muito importantes sobre o processo de exploração, mas vou aqui chamar a atenção apenas para uma delas. No just in time é a empresa principal quem dita o ritmo da produção às empresas subcontratantes e aos trabalhadores terceirizados, e pode fazê-lo facilmente porque a electrónica permite dispersar a captação das informações e simultaneamente centralizar as tomadas de decisão.

(...) Levando à proliferação de firmas pequenas e minúsculas, este sistema agrava a dispersão física e a fragmentação social dos trabalhadores. Embora as empresas principais e a multiplicidade de empresas subcontratantes e de indivíduos terceirizados estejam reunidos nos mesmos processos de trabalho e se dediquem à produção dos mesmos artigos ou dos mesmos serviços, os trabalhadores sentem-se ainda mais divididos e isolados.



Para os administradores das empresas, que detêm o controlo sobre toda a rede de captação das informações e de emanação das decisões e que controlam também os processos electrónicos de fiscalização, os trabalhadores existem enquanto corpo social unificado. (...) Pelo contrário, os próprios trabalhadores, na medida em que o processo de trabalho os isola e dispersa fisicamente, geralmente já não se consideram a si mesmos como membros de uma classe social. Isto significa, em poucas palavras, que os trabalhadores existem como classe para os capitalistas e não existem como classe para eles próprios.



(...) Assim como os mecanismos da exploração retiram aos trabalhadores o controlo sobre o processo de trabalho, e portanto a disposição dos resultados do trabalho, também os mecanismos da opressão lhes retiram o controlo sobre as modalidades de inter-relacionamento. Nesta perspectiva, defino como dominante aquela classe social que consegue ditar os princípios organizativos da outra. Não se trata apenas de uma classe dominante ter ao seu serviço instituições como o governo ou a polícia ou os tribunais. Trata-se de muito mais do que isto, pois os capitalistas estabelecem as próprias formas internas de organização dos trabalhadores, e fazem-no inclusivamente em áreas sociais que os trabalhadores julgam ser suas.



Podemos observar essa hetero-organização nas remodelações urbanísticas a que foram submetidas todas as grandes cidades. Extinguem-se os velhos bairros populares, situados nas zonas antigas, com características mais marcantes, que dão a cada cidade a sua originalidade. Trata-se de um processo denominado em inglês gentrifying, em que, por um lado, as fachadas dos prédios são preservadas, ou se necessário restabelecidas de acordo com o traçado original, mas, por outro lado, os interiores são completamente remodelados e modernizados. (...) Entretanto os trabalhadores, expulsos pelos mecanismos económicos dos seus bairros tradicionais, são lançados para os subúrbios, onde têm de recomeçar a partir do zero o estabelecimento de teias de solidariedade, e em condições especialmente difíceis porque nas zonas de periferia prevalece um tipo de urbanização concebido deliberadamente para dificultar as relações de vizinhança. (...) A hetero-organização dos trabalhadores neste quadro urbanístico é coroada pelos centros comerciais, enquanto lugares de sociabilização hegemonizados económica e culturalmente pelo capital. Antes os trabalhadores estabeleciam, nos seus próprios termos, relações directas de vizinhança e de amizade nos bairros em que habitavam, mas agora uma parte considerável dos ócios dos trabalhadores é passada nos shoppings, locais onde a sua presença é efémera, onde é impossível formar relações continuadas e onde todos os tipos de contacto são condicionados por um arranjo deliberado dos espaços tendente à dispersão e à fragmentação.



No mundo contemporâneo temos de um lado capitalistas providos de uma coesão transnacional, consolidada numa multiplicidade de organizações tanto de âmbito nacional como relacionadas internacionalmente e supranacionalmente em redes de malhas muito estreitas. Do outro lado temos trabalhadores que na sua relação com os capitalistas são dominados em conjunto, como uma classe, mas que entre eles mesmos estão divididos e não lutam como uma classe. Esta dupla situação implica que nas circunstâncias presentes a classe trabalhadora tenha uma existência meramente económica, enquanto produtora de mais-valia, ou seja, enquanto vítima da exploração, sem que tenha existência política e sociológica, enquanto sujeito de lutas e base de formas de organização antagónicas ao capitalismo.



Enquanto esta situação se mantiver o capitalismo continuará sólido, e aqueles que hoje evocam a torto e a direito uma crise do capitalismo fariam bem melhor se procurassem compreender a crise do anticapitalismo.

A dupla situação da classe trabalhadora, entre a sua existência económica para o capital e a sua inexistência política e sociológica tende a agravar-se nos próximos tempos. (...) os pós-modernos consideram a fragmentação das lutas não como uma limitação a ultrapassar mas como o objectivo estratégico a atingir. O seu ideal é uma colecção de ghettos, que têm o mercado como elo de ligação e o «politicamente correcto» como linguagem comum.



Se cada pessoa se enclausurar entre espelhos e não empregar palavras que denotem a persistência real dos problemas, como sucede com o vocabulário «politicamente correcto», e se o mercado se encarregar de ir satisfazendo as necessidades gerais, tudo correrá bem no melhor – ou no menos mau – dos mundos. Se existe exploração, fala-se de cidadania. Se as mulheres são preteridas e mais mal pagas do que os homens, instaura-se a igualdade no reino gramatical e arranja-se uma curiosa sintaxe semeada de barras, travessões e parêntesis em que substantivos, adjectivos, artigos e pronomes figuram nas variantes masculina e feminina. Se há pessoas que são vítimas de racismo por causa da cor da pele, elas passam a ser designadas pela origem geográfica dos antepassados remotos. E se continuam a vigorar discriminações de todo o tipo, então criam-se grupos, clubes, associações destinadas simplesmente a preservar os membros, isolando-os em comunidades de iguais, de maneira que tudo permanece na mesma na sociedade em geral. O mercado assegura as relações entre aquelas ilhas ideológicas e faz com que, no plano económico fundamental, elas constituam partes integrantes da sociedade capitalista.



(...) Existe uma forte ligação entre multiculturalismo e consumismo. Num mundo em que as opções de vida dos trabalhadores são estritamente limitadas e em que o quotidiano de cada um obedece a padrões similares, o multiculturalismo existe exclusivamente sob a forma de consumo de produtos – tanto objectos como serviços – denominados multiculturais.



Chega-se assim ao paradoxo da situação actual, em que o capitalismo é dominado por enormes firmas transnacionais, geridas por uma elite que adopta uma mentalidade inteiramente cosmopolita e supranacional, e os trabalhadores, além de estarem sujeitos às fragmentações suscitadas pelo sistema de administração toyotista, estão ainda divididos por nacionalismos, regionalismos e todo o tipo de especificidades étnicas, físicas e culturais exaltadas não só pela má vontade da direita mas, o que é pior, pela boa vontade de uma certa esquerda. O grande problema hoje é o de partir das lutas fragmentadas com o objectivo de contribuir para que elas ultrapassem a fragmentação. É este o maior desafio que se nos coloca, e só nesta perspectiva podemos definir uma estratégia de luta contra o capital na forma em que ele se apresenta nos nossos dias, o sistema toyotista de organização do trabalho.



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(*) João Bernardo, professor e conferencista português, actualmente radicado no Brasil.



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