TÀPIES, Antoni, A Prática da Arte, Lisboa, Cotovia, 2002
“O artista é um homem de laboratório. Não é um gabinete de propaganda ao qual se encomende a difusão de arbitrariedades” (Pág. 31).
“O artista de hoje não tem de se dirigir a nenhum grupo humano em particular. O seu esforço deve concentrar-se na obra: conseguir uma obra total, profunda e eficaz.” (Pág. 40)
“Nunca acreditei que a arte tenha valores intrínsecos. Em si não me parece nada. O importante é o seu papel de moda, de trampolim que nos ajuda a atingir o conhecimento. Por isso, parece-me rídículo tudo o que tende “a enriquecê-la” com acumulações seja de que for: cores, composição, trabalho… A obra é um simples suporte (…) artifício para fixar a atenção, para estabilizar ou excitar a mente; e o seu valor tem de ser medido unicamente pelos resultados.” (Pág. 54)
“Em momentos como o nosso, em que predominam por toda a estética as mentalidades dirigistas – frequentemente policiais – em que já é difícil falar de sabedoria, de espiritualidade, de sensibilidade delicada ou da arte de viver sem provocar risadas ou perseguições: a tal ponto chegou a tergiversação dos valores!, o artista verdadeiro tem forçosamente de parecer um marginal, um solitário, um estranho à parte (…) Em momentos politicamente desfavoráveis, os artistas poetas eruditos dos Sung ou dos Ming também nos ensinaram a arte de se afastarem das coisas oficiais e de não colaborarem com o que consideravam inaceitável. Nas suas cabanas solitárias, conservavam a independência longe dos funcionários ao serviço dos antigos ou novos mitos desumanos e, com as suas obras de choque, contrárias a toda a convenção e falso valor, com as suas formas desenvoltas e sem respeito pelas regras ou liturgias, armados apenas com a sua máxima exigência de submissão à natureza das coisas (…) conseguiram transformar e abanar a consciência adormecida dos seus contemporâneos. (…) Virarmos as costas e negarmos muitas coisas de hoje, resistirmos a aceitá-las, por mais prestigiadas e sagradas as auréolas com que nos são apresentadas, é um dever vital. O nosso destino está em jogo: fazer perdurar a ignorância e os falsos mitos, e portanto a opressão, ou procurar o conhecimento e a felicidade. Vale a pena dedicarmos a esta alternativa toda a nossa vida, vale a pena a aventura e o risco de passarmos por sonhadores, e até por loucos – divina loucura! – como foi o caso de alguns artistas chineses, como Mi, o Louco, ou Pa-ta Xan-Jen, que fingiu ser mudo durante quase toda a vida (…) Na realidade tenho a certeza de que esta é a única tradição que devemos aceitar de olhos fechados: a que está na linha da luta perpétua contra a ignorância, luta que foi sempre travada pela sabedoria de todos os tempos”. (Págs. 79,80)
“Mas brincar não significa fazer as coisas “só porque sim”. E como todas as brincadeiras de crianças, os artistas também não fazem as coisas “só porque sim”. A brincar… a brincar em pequenos, aprendemos a ser grandes. A brincar… A brincar fazemos crescer o nosso espírito e ampliamos o campo da nossa visão, do nosso crescimento” (Pág. 94)
Do capítulo “Arte e Funcionários”
“Felizmente o artista dirige os olhos para outro mundo, para outra sociedade e para outras formas mais limpas, não contaminadas nem doutrinadas, com vontade de intervir. Ali onde a sua obra, longe de ser usada como um enfeite na moda. Ou uma purga de “maus pensamentos”, ou um mero instrumento propagandístico de “colheita de louros” possa contribuir realmente para o seu desenvolvimento harmónico, possa servir, juntamente com o trabalho de todos os que lutam nas outras disciplinas humanistas, a mais autêntica libertação e aperfeiçoamento.
Com o passar do tempo fui vendo, mais agora do que nunca, que em todas as épocas – tirando muito raras excepções – o autentico artista, o poeta, o grande pensador tem sempre fatalmente de fugir para o mais longe possível do mundo dos funcionários, quer na China dos Ming, quer na corte de Filipe II, ou na Checoslováquia actual, para mostrar a toda a gente que existe um terreno onde estes jogos, estas intrigas de altas chancelarias se esvaem perante a brancura imaculada da arte que lhe serve de inspiração.” (Págs. 105,6)
“O certo é que sempre haverá quem, de maneira mais inesperada, num recanto de sua casa, servindo-se sabe-se lá de que materiais – dos quais, naturalmente, e para já, os escritores profissionais dirão que não são arte – ou combinando sabe-se lá que espécie de textos – dos quais dirão que não é poesia – ou sons – que para alguns não serão música – poderá chegar a comover mais tarde uma geração. E certas formas que parecem de grande inocência semântica (…) acabam por converter-se, sem que ninguém o tenha conseguido provar, no verdadeiro estilo de uma época. Foi sempre perigosa a tentação, por parte dos que se dedicam à estética, de profetizar demais. As vezes são professores muito cultos que se servem de um aparelho bibliográfico impressionante e que, naturalmente, fazem o papel de inapeláveis diante do grande público. Mas a experiência ensina precisamente o contrário. Geralmente enganam-se. Pretendem encerrar o fenómeno artístico nas malhas das suas análises trabalhadas e demoradas; porém, quando julgam que o conseguiram, já não encontram nada, porque a vida seguiu por outros caminhos, são vítimas da análise. Parecem dar razão àquele personagem de Thomas Mann que dizia: “A análise é boa como instrumento do progresso e da civilização, boa na medida em que destrói convicções estúpidas, dissipa perconceitos e mina a autoridade. Por outras palavras: na medida em que humaniza e prepara os oprimidos para a liberdade. Mas é má, muito má, na medida que coloca obstáculos à acção, prejudica as raízes da vida e é impotente para lhe dar forma. A análise pode ser uma coisa muito pouco desejável, tão pouco desejável como a morte de que na realidade se alimenta.
Esquecem-se precisamente, que o poeta, o artista, o músico e o pensador independente se alimentam sempre, entre muitas coisas, de um estranho fervor rebelde perante qualquer tentativa que pretenda reduzi-los ou classificá-los num qualquer esquema. É uma espécie de necessidade, que parece inerente a todo o artista – está seguramente aqui a matéria primordial do acto criativo – de ludibriar os que esperam que determinada coisa aconteça num determinado momento. É a exclamação de Liszt ao ouvir Chopin: “Surpreendente; nesta passagem tinha de estar inevitavelmente um fá e este homem sai-nos com um si bumol”. (Págs. 129,130)
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